DO CÉU AO INFERNO EM 16H

35º dia de viagem
Cidade: Charata/AR | Categoria: Diário do Piloto
Postado em: 6/1/2013
Diário de Motocicleta

O dia seria longo, nem tanto pela quilometragem prevista – 1.200 km – mas pelo fato que me detenho muito aos detalhes do caminho e suas paisagens, parando constantemente para fotografar e em muitas ocasiões, retornando para filmar um trecho em que a câmera estava desligada.

Entre Chilecito e Corrientes, haveriam vários trechos que eu já sabia que me prenderiam, e isso me preocupava quanto ao horário.
Abaixo da linha de Buenos Aires, o Sol durante o verão se põe por volta das 21h... quanto mais ao sul mais tarde ainda. Isso foi um fator que contribuiu com o projeto, já que não havia necessidade de sair tão cedo do hotel, e a possibilidade de rodar com o dia claro até umas 22h não era problema, mas agora as coisas começavam a mudar no céu, o que não me impediu de sair pontualmente atrasado às 9h.

Pelo previsto, eu ainda teria 40 km de Ruta 40 para me despedir, mas a realidade me presenteou com 100 km a mais.

Saindo de Chilecito, a Cordilheira, acompanha a pista do lado esquerdo em algumas ocasiões bem colada, outras um pouco distante, mas da mesma forma impressionante. Ao lado direito, um Cerro se ergue imenso, para o qual a estrada vira e segue em sua direção.

Colado a este Cerro está uma pequena cidade chamada San Blas de los Sauces onde em pouco mais de 22 km cruzando uma pequena rua, leito da Ruta 40, recebi a maior quantidade de acenos da viagem inteira. Era como se todos soubessem que eu estava prestes a deixar aquela estrada e voltar para casa. Foi emocionante ver senhores e senhoras de idade, jovens e crianças correndo no quintal das casas dando tchau enquanto eu passava. Confesso que aquilo me emocionou, tanto quanto o chegar ao cruzamento com a Ruta 60. Ali acabava para mim mais de 3.700 km de Ruta 40, pertinho do seu fim e do trecho mais difícil – 1.100 km subindo ao norte rumo à Bolívia, que farei em outra oportunidade.

Foi um momento de olhar para trás com satisfação, de relembrar em filminhos dentro da cabeça os momento difíceis, do rípio bom e do ruim, das paisagens fantásticas que poderei relembrar a qualquer hora fechando os olhos ou revendo os vídeos que em breve os amigos poderão assistir.

Dever cumprido – em parte – página virada – 100%.
O horário não permitia saudosismo, e muito chão ainda tinha pela frente.

Passados uns 50 km o segundo trecho que me tomaria mais tempo, a Quebrada de la Cébila, uma passagem por um Cerro, de aproximadamente uns 10 km que corta paredes escarpadas em um zig-zag difícil de passar direto e não fotografar ou filmar... Não teve jeito, fiz este pedaço duas vezes!

Logo após em Vila Mazan vi um motociclista parado nos restos de um posto de combustível e parei para pedir detalhes do caminho. Seu nome é Ricardo, morador de San Blas que voltava de uma volta pelo Uruguai, me explicou bem o caminho, mas que na verdade era um roteiro diferente do meu planejamento ... as dúvidas pairavam na minha cabeça e a alternativa era seguir em frente. Uma coisa que tenho ao meu favor é o sentido de direção, sempre ao sair sei para que lado devo seguir, então fui pelo faro.

Agora 20 km à frente um presente dos deuses. A Ruta 60 cruza cerca de 25 km da Sierra de Ambato com curvas fechadas e um mar de montanhas enfileiradas de rochas e vegetação que alternam entre árvores e cactos gigantes.

Há momentos em que a estrada te coloca de frente a paredões com mais de 1.000 m de altitude que é impossível não te fazer parar no acostamento. Mas é preciso cuidado, existe bandenes (aquelas depressões para as águas da chuvas passarem) que estão repletos de pedras e areia... passei voando por um destes jurando que ia comprar terreno em Ambato. Do nada a pista se ergueu e na baixada, um bandenes repletinho de cascalho... foi o tempo de prender a respiração, levantar da moto e falar algumas palavras impublicáveis. Se foram mágicas não sei, mas dali pra frente virei a mão e fui mais atento ao caminho, já que são poucas placas de sinalização.

A Sierra de Ambato ao ser cruzada, coloca-te na Ruta 38 e te acompanha até San Fernando del Valle de Catamarca, Catamarca para os íntimos, onde parei para abastecer e aproveitar o Wi-Fi do posto para conferir meu trajeto.

Eu estava a 5h na estrada e só tinha percorrido 350 km dos 1.200 previstos para o dia. Juro que eu desejei rodar os retões chatos do Chaco, assim não teria mais que parar e fotografar. Mas o caminho me reservava mais dois trechos lindos, que infelizmente não foram filmados por falta de bateria e memória da Go Pro – a próxima viagem vou com umas cinco baterias reservas ao invés de uma.

Passados uns 50 km cheguei a uma cidadezinha chamada La Merced que apresentou uma paisagem fora do contexto... verde para todos os lados, com uma floresta digna de Mata Atlântica e com um traçado bem semelhante a serra entre Paraná e Santa Catarina, com curvas abertas e largas onde é possível deitar a moto e entortar o cabo. Somado a esta emoção, um céu negro me aguardava logo à frente, onde por conta da altitude, coisa de 900 m, uma camada de nuvens brancas pairavam no horizonte e acima uma "nave espacial" negra gigante descarregava raios.

O inferno aproximava-se rápido!

Superado este trecho, acessei a Ruta 64 e ganhei uma estradinha já molhada, de pouco mais de 5 km de pista estreita onde dois caminhões não passariam com curvas fechadas tal qual a mata ao redor.


Finalmente, atendendo as minhas preces, o caminho virou um retão e ao chegar em Santiago del Estero, ainda faltavam mais de 600 km e o dia já começava a escurecer.

Tão logo cruzei absurdos 30 km do início da Ruta 89, com apenas uma faixa de concreto para duas mãos, ultrapassando caminhões e ônibus que diversas vezes me lançaram para o acostamento – a estrada é só acostamento – a noite veio com água. Primerio o cheiro de chuva, que foi ficando mais forte a ponto de molhar o meu nariz.

Sozinho na pista, os clarões de raios e trovões iluminavam a noite e davam a ideia da tempestade em que eu estava. Isso reduziu muito a minha visibilidade e consequentemente a velocidade, até que por volta da meia noite, após ter rodado cerca de 1.000 km entrei em uma cidade chamada Charata e me hospedei num hotel quase no fim dela.

Para Corrientes ainda faltavam 300 km e eu estava cansado, completamente molhado e com fome. Mas chovia tanto que não consegui sair do hotel para jantar, e o mesmo não tinha nada a oferecer, já que o café da manhã é explorado por um senhor que só trabalha até as 10h.

Dormi com um sorriso estampado na cara, com a barriga vazia e roncando mais que o cara do quarto o lado.

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